A arte da autossabotagem: O fim da minha carreira
Semana passada, enquanto tentava resolver um problema no trabalho, me peguei rindo de uma memória antiga. Era 2010, eu tinha 16 anos e estava desesperadamente tentando acompanhar meus amigos no Grand Chase. Eles já dominavam o jogo há meses, enquanto eu permanecia sempre três passos atrás, frustrado por não conseguir fazer meus personagens evoluírem no mesmo ritmo.
Foi então que descobri os fóruns. E com eles, um novo mundo, uma comunidade.
Meu nome é Samuel Marques, tenho 29 anos, e essa é minha primeira tentativa de contar uma história real. Não é sobre sucesso meteórico ou genialidade precoce. É sobre todas as vezes que tive a chance de ouro na mão e a joguei fora.
Spoiler: essa história não tem final feliz tradicional. Tem algo melhor - tem honestidade.
O despertar digital (ou: como um moleque de Caruaru descobriu que podia hackear o mundo)
Imagine um garoto filho de professores - minha mãe de Artes e Português, meu pai de autoescola - criado numa família de classe média onde “o dinheiro nunca faltou, mas também não sobrava”. Para esse garoto, que ia mal em matemática e se destacava só em História e Filosofia, descobrir que podia criar programas no computador foi como ganhar superpoderes.
Não era só sobre trapacear no jogo. Era sobre existir.
Sabe aquela sensação quando você faz algo que ninguém esperava que você conseguisse? Era isso, mas intensificado. Quando conseguia criar meu próprio programa e colocar nos fóruns, meu nickname ficava conhecido. As pessoas me conheciam, me respeitavam. Para um adolescente comum, essa sensação de importância era viciente.
Logo percebi que não bastava só fazer as coisas funcionarem - elas tinham que ser bonitas também. Foi aí que comecei a mexer com Photoshop. As imagens que criava para os fóruns eram meu primeiro trabalho de verdade, minha primeira vez mexendo com design. Cada imagem era como uma pequena obra de arte pessoal.
Para quem não viveu essa época: essas imagens apareciam embaixo de cada comentário que você fazia. Era como ter sua própria marca registrada - podia ser algo como algum personagem de anime, de um jogo, série de TV etc.
Era 2010, eu não tinha pretensões grandes. Só queria dividir o que sabia e retribuir um pouco do que a internet me dava. Hoje, quando vejo aquelas criações antigas (que ainda existem por aí), bate uma saudade do tempo que tudo era mais simples. Era divertido, verdadeiro.
Que falta faz esse moleque.
A busca pela aceitação (ou: como estragar uma coisa boa tentando agradar todo mundo)
“Que profissão você vai ter?”
Para mim, aos 17 anos, a resposta era clara: ia trabalhar com computador ou design. Mas como não tinha curso de design aqui em Caruaru, fui fazer faculdade de programação. O começo foi incrível - finalmente entender a teoria por trás das coisas que eu já fazia, conseguir estágio no primeiro semestre…
Mexer com sites era perfeito: juntava design e lógica numa coisa só. Mudava algumas coisas e via o resultado na hora. Era quase mágico.
Aí chegaram as matérias chatas.
“Para que diabos eu preciso saber isso?”, pensava, enquanto via toda minha empolgação indo pelo ralo. Larguei a faculdade. Meus pais ficaram arrasados. Para eles, quem não tem diploma não tem futuro.
Primeiro grande erro: tentar me encaixar num molde que não era meu.
Pressionado pela família, entrei em Design Gráfico. Primeira turma da faculdade, professores improvisando, estrutura precária. O engraçado? Aprendi mais sozinho na biblioteca do que nas aulas. Mas pelo menos comecei a estagiar cedo. Enquanto meus colegas esperavam “a hora certa”, eu já estava trabalhando de verdade - Social Media, ilustração, Logos, Sites, Motion Design.
Montei um portfólio legal, ganhei experiência… e larguei mais uma faculdade. Dessa vez, continuei indo nas aulas sem estar matriculado oficialmente. Meus pais não sabiam de nada.
Confesso: até hoje me sinto mal por essa mentira. Mas às vezes a vida te coloca entre a verdade e a paz de casa.
A vida profissional caótica (ou: como ser bom no que faz e péssimo como pessoa)
Aqui vem a parte mais difícil de admitir. A parte onde conto que fui, por muito tempo, um funcionário terrível.
Com um bom portfólio, arrumar trabalho não era difícil. Eu sabia fazer as coisas direito - criava arte, fazia sites completos, entendia tanto a parte visual quanto a técnica. Chegava em casa pensando em projetos, imaginando melhorias, estudava coisas novas. Até sonhava com trabalho.
Mas como funcionário? Um desastre ambulante.
Chegava atrasado como se fosse tradição de família. Não batia ponto como se fosse um ato revolucionário. Terminava minha parte e ia embora sem avisar ninguém, como se as regras da empresa fossem apenas sugestões. Para mim, só importava entregar um bom trabalho no prazo. O resto? “Não se aplicava a mim.”
Era pura arrogância disfarçada de talento artístico.
Resultado: passei por várias empresas da cidade. Durava pouco em cada lugar. Não tenho orgulho nenhum disso - prejudiquei pessoas, queimei pontes à toa, desperdicei chances que muita gente mataria por ter.
Para todo mundo que trabalhou comigo nessa época: peço desculpas de coração.
O fundo do poço
Chegou uma hora que simplesmente não conseguia mais emprego. Procurei, procurei, mas nada. A pressão em casa só aumentava - para meus pais, eu “só ficava no computador o dia inteiro” fazendo sei lá o quê.
Desesperado, tentei mudar de área completamente. Mecânica de moto (durou três semanas). Faculdade de História (pelo menos essa me interessava). Qualquer coisa para ter uma profissão que pagasse minhas contas e que eu pudesse sair de casa para morar sozinho (ero o grande sonho na época).
Aí veio 2020. E tudo mudou.
A montanha-russa do sucesso (ou: como ganhar R$ 20 mil e ainda conseguir se sabotar)
A pandemia abriu as portas do trabalho remoto. De uma hora para outra, um cara de Caruaru podia trabalhar para empresa da Europa. Era um mundo novo - reuniões por vídeo, trabalhos em equipes com projetos interessantes, projetos internacionais.
Comecei ganhando R$ 2.800 por mês, convertido do euro. Para quem não tinha nada, era um sonho realizado (naquela época, 2.000 para um cara que morava com os pais não era má coisa).
Mas aquela voz na minha cabeça - a que sempre me fazia sabotar as coisas - não tinha ido embora. Comecei a repetir os mesmos erros de sempre. Saí da empresa, mas não importava - o mercado estava fervendo.
A subida meteórica
Era 2021, 2022. O mercado de tecnologia estava uma loucura. Recrutadores me procuravam sem eu fazer esforço nenhum. Cada mudança de emprego significava ganhar mais dinheiro. Saltei de um cargo Júnior para Sênior em dois anos.
Mas não estava preparado para isso. Ser experiente não é só saber fazer as coisas - é saber liderar gente, ensinar, guiar equipes. Eu fingia que sabia o que estava fazendo, mas por dentro estava perdido.
O pico e a queda
O auge: um trabalho remoto internacional. Quase R$ 20 mil por mês (na época de alta do dólar).
Nunca tinha visto tanto dinheiro junto. MacBook, iPhone top de linha, equipamentos caríssimos… Gastava como se o dinheiro fosse infinito, como se aquilo fosse durar para sempre.
Quando fui demitido, tive que vender tudo para conseguir pagar as contas básicas.
Dói admitir: se tivesse sido inteligente com aquele dinheiro, estaria em outro patamar hoje. Poderia ter dado uma vida melhor para quem amo, ter me preparado para o futuro. Mas não. Gastei tudo em coisas que não importavam.
O padrão que se repetia
Mesmo depois dessa queda, continuei pulando de empresa em empresa. Nunca ficava mais de um ano no mesmo lugar. Tinha dias que simplesmente não queria trabalhar - e não trabalhava. Sumia, não respondia mensagens, deixava a equipe na mão.
O pior é que eu sabia que estava fazendo isso. Era como assistir a mim mesmo destruindo as próprias oportunidades, mas não conseguir parar.
O despertar de verdade
Hoje estou há mais de um ano na mesma empresa. Tenho uma esposa e um filho a caminho. Por eles, trabalho mesmo quando não estou com vontade. Por eles, tento ser uma pessoa melhor todo dia. Não é o motivo mais puro do mundo - é algo externo a mim - mas pelo menos é alguma coisa.
Ainda não sei direito o que me fazia me sabotar tanto. Talvez isso vire outro texto, quem sabe com ajuda de um psicólogo lendo isso. O que sei é que o “fim” do título não é sobre parar de trabalhar com tecnologia. É sobre matar meu eu antigo - aquele que desperdiçava chances, que não valorizava a confiança das pessoas, que confundia talento com caráter.
Num mundo onde nossa profissão fica cada vez mais incerta, decidi voltar às origens. Lembra do moleque que só queria criar e dividir conhecimento nos fóruns? Ele está voltando, aos poucos, mas está voltando.
Quero escrever, ensinar, ajudar outras pessoas a não cometerem os mesmos erros que eu cometi. Quero construir algo verdadeiro, autêntico.
E quero me divertir no processo - quem sabe ajudando alguém pelo caminho.
Por que contar tudo isso?
Porque sua carreira não é um perfil perfeito no LinkedIn. É uma jornada cheia de erros, aprendizados, autossabotagem e recomeços.
Porque talvez você também seja aquele profissional que sabe fazer as coisas direito, mas tem problemas com disciplina e responsabilidade.
Porque talvez você também tenha desperdiçado oportunidades e precise se perdoar para seguir em frente.
Ou porque, assim como eu, você ainda tem aquele moleque curioso lá dentro - e está na hora de deixá-lo criar de novo.
Gostei de escrever isso. Me fez sentir muita coisa, repensar vários momentos da vida. Já estou com ideias para outros textos…
Até breve! 👋
Se você chegou até aqui, obrigado por ler minha história. Se ela fez sentido para você de alguma forma, fico feliz. Se não fez, tudo bem também - cada jornada é única.